segunda-feira, 26 de março de 2012

Pulga


Com o pentinho-caçador em punho, dá-se inicio o ritual. Um traço de obsessividade compulsiva tem, enfim, uma vazão criativa e benéfica. Deságuam no repetitivo gesto, as tensões do dia, as frustrações, temperados com carinho e bem-querer, Passo o pente-língua entre os pelos sedosos de minha gata. Ele faz as vezes de lambidas maternas. Pelo menos é o que intenciono que ela sinta! Que se sinta cuidada e amada. Parece entender a intenção e fica imóvel, após tantos ensaios desastrados e miados desafinados.

Puxo o pente com os olhos e dedos atentos, para capturar aquele ser desprezível, que rouba o sangue frágil da bichana. Vislumbro o inseto tonto entre os dentes e taco um pedaço de papel embebido em alcool para prendê-lo...me dirijo a uma superfície dura e soco o maldito bicho até sentir o barulho característico de sua carapaça se rompendo. Outrora, causava-me nojo. Agora, algo envergonhada admito surgir um insuspeito prazer sádico. Será que essa transformação se deu devido ao novo amor que sinto por essa criatura peluda que habita agora meu coração?

Repito o procedimento quantas vezes a gatinha suporte e inevitavelmente, uma ou outra pulga escapole e lá vou eu de quatro, perseguir o individuo saltador. As vezes o surpreendo em meu próprio braço, transformado em trampolim para sua fonte de vida, ao alcance.

Minha consciência se expande, enquanto permaneço de joelhos rastejando atrás da fugitiva vampira. Penso por um instante que aquele ser é sagrado e expressão divina. Qual sua missão? Para que existe? Qual o seu papel nos Planos de Deus? Em conflito com minhas reservas quanto a função dos parasitas (todos, inclusive humanos), o instinto de proteger minha cria e a reverencia por toda forma de vida, peço para ver com os olhos do Criador.

Troca de presentes




Ela chega marota, dizendo que tem um presente para mim. Sorrio e me junto a ela, a deliciar-me com sua irreverência que não causa mal algum. Também lhe trouxe um presente. Lembretes do pensamento em comunhão, em alguma esquina, em algum momento.

Diz que trouxe um queijo minas. Não qualquer um. Aquele. Aquele que gosto tanto. O melhor de todos. Aquele que se encontra a algumas centenas de quilômetros daqui. Fico imensamente feliz. Sinto que meu pedido de perdão (a Deus) foi ouvido. Ela já me presenteara outro, que ficou esquecido e perdi...Não cuidar bem de um presente da mãe/do Universo pode ser sinônimo de danação, pecado, ou – mais recentemente – processo terapêutico. Três sessões por semana! Que alívio! O Criador me manda um novo presente. Acha que aprendi a lição. Concordo.

Não demoro a retribuir: consegui o batom que ela gostou. Aquele, que está difícil de encontrar. Ela adora e agradece. Percebo que fica ainda mais contente quando lhe digo que comprei um igual. Comunhão de batons, além de comunhão de afeto!

Ponho-me a pensar risonha, no simbólico dos respectivos presentes especiais. Faz sentido: ela ainda me dando leite, da forma que uma mulher de quase 50 deveria tomar. Eu dando-lhe um pouco de “falo”, revestido de feminilidade. Um “falozinho” cor de rosa, porém um objeto de poder, mesmo assim. Um pouco da minha energia masculina, que “batalha”, se coloca no mundo, transita no mundo racional, objetivo, e às vezes perverso, do trabalho. Um singelo incentivo para que busque suas coisas, sua autonomia. Não precisa viver isso através de mim.

Agradeço-lhe por todos os ˜leitinhos, que ajudaram a me tornar quem sou, apesar de nascida com um quilo e meio e sem muita vontade de ficar por aqui!

Tons


Belo coração canoro, o seu
Colhe prana e o transforma
Em melodias
Me eleva nas notas soltas que se desmancham no ar
Passeio por escadas para o Céu
Arrepios...sangue a disparar
Universos paralelos nos tons e semi-tons
Cores que jamais vislumbrei
Flutuante como borboleta e certeiro como o ferrão de uma abelha
(Diria o grande Muhammad Ali)
você é luz
Minha alma rodopia,extática ao seu redor
Quer ficar ali...qual eterno dervixe

Troco de par...agora
Um coração a praguejar
Meus ouvidos se encolhem
Ouvem tiroteio de
Guerra ressentida
Contra o mundo
Passeio pelas sombras
Leveza, aqui não há
Sobrevoa um morcego
Peso acachapante sufoca...
Não encontro nenhuma ranhura
Por onde instilar algum amor,
Mal consigo respirar...aqui não encontro o Céu.

Linguásana


Linguásana

6:15 da manhã...a gatinha já está por perto querendo que eu pule da cama. Tenho ainda 45 minutos preciosos para desfrutar e peço-lhe para voltar a dormir. Ela acata, relutante. Tudo escuro ainda! Viro para o lado e me acomodo.

Ouço, então, o motor de um caminhão ser desligado bem na frente do prédio. Dele descem alguns homens que aguardam um horário mais decente para adentrar a obra. E põem-se a conversar. Incessantemente, irritantemente. Ocupam todos os vazios relaxantes. Afugentam os passarinhos.

Procuro certa neutralidade, acolher o “presente” sem opor resistência. Desafiador  exercício para quem acaba de acordar! Observo como se expressam, o tom de suas vozes. Penso em como é evidente a necessidade de ocupar espaço através da fala, ser “visto”, autoafirmar-se.

Lembro da conversa gostosa sobre o silêncio com um amigo, dias atrás. Como tememos o vazio silente. O que tememos encontrar nele? Que perigo fantasiamos? Falamos, fazemos algo ou dormimos...muitos de nós. Nenhum espaço de silêncio é permitido. Nenhum espaço para escutar(-nos) na quietude. A maioria, como dizia um mestre de Yoga: pratica intensamente o linguásana!

En cierta madrugada


En un amanecer
de insolito
silencio
sobre la ciudad

Los pájaros
en sus árboles-minaretes
a anunciar
las primeras oraciones

Con Dios conversaba
cuando me inundó
un inmenso amor
que desconocia
como nombrar
contener o soportar

Una añoranza
un recuerdo
pleno, contento
casi un dolor!

Ocupando
toda la pieza
esta vida
y las demás

Me di cuenta
que te reencontraba,
amado amigo,
cálido
como una flor
un rayo de sol
una taza de té
en un Invierno más!

¡Gracias!